Opinião
Padaria artesanal, um desafio
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“Você é vagabundo, hein?”, disse-me um senhor enquanto eu levantava o portão de aço da padaria. Era um domingo, por volta do meio dia, hora que cotidianamente abro o estabelecimento para a freguesia.
Faz quase um ano que montamos a Pistor Pães Artesanais, no bairro de Santa Cecília, na cidade de São Paulo, em plena pandemia. Da inauguração para cá, ouvi considerações desse tipo algumas vezes, a maioria delas, claro, em tom de brincadeira.
Uma das riquezas do contato com o público é a possibilidade de observar a profusão de perfis, personalidades e retornos sobre o trabalho apresentado. Quando se tem clareza da proposta, do produto e dos valores do empreendimento, a resposta do cliente – crítica ou elogiosa – é sempre de muito proveito.
Não pretendo, aqui, no entanto, discutir pessoas ou ações individuais, mas, antes, refletir sobre ideias e concepções de um negócio chamado pão artesanal. Para além de predileções e impulsos momentâneos, convém analisar a relativa novidade que são essas pequenas padarias no cotidiano das cidades brasileiras.
Em primeiro lugar o termo.
Padaria hoje é um enorme guarda-chuva conceitual sob o qual se abrigam estabelecimentos tão diversos que algumas pessoas preferem utilizar variações como “casa de pães”, “ateliê”, “boulangerie” e outras para se referir aos pontos de comércio dos padeiros artesanais. É no mínimo curioso que um local que se dedique exclusivamente a produzir e comercializar pães – como a Pistor – cause desconforto ao se apresentar exatamente como o que é: uma padaria. Artesanal, é verdade, mas uma padaria.
As raízes desse ruído de comunicação talvez se localizem na história recente da panificação brasileira. Falo de São Paulo, capital onde por volta dos anos 1970 começou a ficar clara certa tendência de modelo de negócio. Hoje a típica padaria paulistana – considerada por muitos um patrimônio da cidade – é um misto de lanchonete, restaurante, bar e loja de conveniência.
Não é de se estranhar que São Paulo – epicentro do capitalismo tupiniquim, “locomotiva do Brasil” – tenha sido o principal palco onde esse fenômeno se configurou e hoje pode ser observado por todo o país. Um mundo regido pela lógica do trabalho e da eficiência foi o campo propício para o florescimento de um tipo de estabelecimento comercial onde o cidadão comum “resolve a vida”, seja ao pedir um salgado a caminho do batente, almoçar rapidamente por quilo na hora do almoço da firma, beber uma cervejinha no balcão após o expediente ou simplesmente comprar uma pilha no caixa da… padaria.
Correndo risco de soar esquemático e generalizante, é possível dizer que tal empreendimento terminou por subordinar o produto ao serviço. É claro que há padarias tradicionais que fabricam bons pães e prezam pela qualidade da comida que oferecem. Mas, de modo geral, não se pode negar que haja um público que pouco se importa que seu pão francês esteja seco, desde que a padaria disponha de estacionamento e manobrista. Não se incomoda se alguns pães e doces que consome sejam produzidos a partir de pré-misturas industriais, desde que as vitrines estejam sempre repletas no momento que precisar, seja às 6h da manhã ou às 11h da noite.
Padaria Artesanal
A padaria artesanal, por outro lado, procura se posicionar na contramão desse movimento. Evidentemente que não se trata de um fenômeno homogêneo, podendo haver mil variações de propostas. Mas, de cara, salta aos olhos a ênfase na qualidade do produto. Sabor, digestibilidade e saúde passam ao primeiro plano dos valores apregoados em detrimento, muitas vezes, do conforto e comodidade oferecidos ao cliente.
Entra em cena, então, a preocupação com a matéria-prima, com as farinhas orgânicas e os grãos de pequenos produtores. À velocidade estonteante da vida contemporânea se contrapõe a lentidão da fermentação natural. Assim, para garantir o bom pão à mesa, é necessário sair do automatismo cotidiano para se atentar aos dias, horários e maneiras de funcionamento das pequenas padarias.
Há quem diga que a panificação artesanal da atualidade é uma tentativa de retomar um passado fulgurante. No entanto, se o poeta já dizia que “o tempo não para”, acrescento que ele também não pode regredir. Essa geração de padeiros independentes, portanto, tem o rosto do tempo presente.
As novas relações profissionais, a decadência das leis trabalhistas e certa proletarização da classe média – que invadiu os postos das cozinhas profissionais – estão na base do surgimento dos pequenos empreendimentos de panificação. Sem contar com grupos de investidores, jovens padeiros lançam-se ao mercado enquanto ainda estão adquirindo os dispendiosos equipamentos necessários para uma estrutura mínima de produção.
O bom pão artesanal precisa de um mínimo de 24 horas para ser produzido (da alimentação do fermento natural ao forno). Trata-se, além disso, de um processo permeado por muitas etapas que exigem técnica e experiência do padeiro para não colocar a perder um percurso complexo e demorado. Esse é o principal motivo que explica o fato de a maioria das padarias artesanais trabalhar com a ideia de produção limitada.
Não há, assim, uma relação de rivalidade entre o formato tradicional de panificação e os empreendimentos dos padeiros contemporâneos. Não é preciso escolher um ou outro. Para usar uma linguagem de mercado, pode-se dizer que não se trata de um caso de “concorrência direta”. Ambas as propostas caminham juntas e atendem a necessidades diversas e muitas vezes circunstanciais.
Ao contrário do que possa parecer no início do texto, esse primeiro ano da Pistor foi uma experiência de compreensão e acolhimento. O simbolismo do pão não precisa ser resgatado pois sempre esteve vivo. Não à toa produzi-lo se tornou um refúgio para tantos padeiros domésticos em quarentena. Que o pão artesanal cumpra o seu destino de sustento e partilha depois que tudo isso passar, e que possamos saboreá-lo ao lado de quem amamos em breve.
Fotos: Pedro Napolitano Prata
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